A vez em que cheguei em casa, empolgado com um mundo novo que se abria diante
dos meus olhos de menino, e tirei da minha mochila a cartilha ainda cheirando a
nova e abri na primeira lição e li para minha mãe, encantada, as primeiras
palavras da minha vida, que tinha acabado de aprender naquela tarde de
verão.
A vez quando, entre os raios de sol que pendiam dos galhos de uma
araucária, eu vi uma gralha azul e me senti abençoado e, quando duvidaram de que
eu tinha visto em plena cidade algo tão raro a ponto de se tornar só uma
história que se ensina nas escolas, tive a segurança de responder simplesmente
"eu senti que era".
A vez em que primeiro subi na minha moto e fomos
para a estrada e senti a fragilidade da minha vida e a liberdade de não estar
somente passando pela paisagem, mas fazendo parte dela, sendo filho do vento,
gritando de excitação dentro do capacete debaixo da chuva leve que caía.
A vez quando, numa quarta-feira sem nada de especial, andando pela rua num
final de dia eu me senti subitamente feliz de uma felicidade tranquila e serena,
subitamente consciente, e sorri, sem uma testemunha sequer, o sorriso mais
satisfeito que lembro de ter dado em minha vida e que desde então, ainda esse
mesmo sorriso, volta ao meu rosto em certas ocasiões.
A vez na qual,
depois de ter resistido a uma tentativa de assassinato numa viagem solitária,
corri meio continente de volta para casa e encontrei minha mãe na ainda de
pijama, com um bule de café fumegante no fogão e, sentado à mesa, no silêncio de
quem não sabe ou não quer dizer nada, senti como nunca a força delicada do amor
de quem nos cria para entregar ao mundo.
A vez em que eu, entre
amedrontado e ansioso, diante dos meus amigos e da minha família, olhava para as
portas da igreja que se tinham acabado de abrir e ela caminhou em minha direção
e eu soube que não desejaria da vida, daquele em momento em diante, nada mais
que não seja dedicar àquela mulher até o último suspiro que Deus me permitir dar
neste mundo.
A vez em que, mesmo depois de já ter ouvido várias vezes,
eu realmente ouvi a Nona Sinfonia de Beethoven e senti o corpo arrepiado e
chorei e agradeci em silêncio Àquele que deu ao Homem a capacidade e a
sensibilidade para criar coisas tão maravilhosas.
A vez numa manhã
nublada e um pouco fria em que encontramos um casco de tartaruga entre os galhos
que o mar arrastou para a praia numa noite de tempestade e pensei em quanto não
havia vivido aquele animal, em que segredos submarinos não guardava aquele casco
silencioso, até que viera morrer nas areias perto da casa de meu pai.
A
vez, depois de meses longe da escrita, anestesiado por falta de tempo, de
inspiração ou mesmo de vontade, em que resolvi checar, num gesto meio mecânico,
as redes sociais e chorei ao encontrar uma mensagem de que uma pessoa, uma mãe
de família que me leu e lembrou-se de um sonho e começou ela também a
escrever.
São essas vezes, essas pequenas ocasiões luminosas, muito mais
que os grandes intervalos entre elas, que nos fazem quem somos. São essas vezes,
e ainda muitas outras de que não me lembro agora e umas tantas sobre as quais,
de tão sublimes e fugidias, não conseguirei jamais escrever.
São essas
vezes.
Texto de Bruno Palma e Silva, publicado no blog Acepipes Escritos