Aos namorados do Brasil, Carlos Drummond de Andrade

Dai-me, Senhor, assistĂªncia tĂ©cnica
para eu falar aos namorados do Brasil.
SerĂ¡ que namorado algum escuta alguĂ©m?
Adianta falar a namorados?
E serĂ¡ que tenho coisas a dizer-lhes
que eles nĂ£o saibam, eles que transformam
a sabedoria universal em divino esquecimento?
Adianta-lhes, Senhor, saber alguma coisa,
quando perdem os olhos
para toda paisagem ,
perdem os ouvidos
para toda melodia
e sĂ³ veem, sĂ³ escutam
melodia e paisagem de sua prĂ³pria fabricaĂ§Ă£o?

Cegos, surdos, mudos - felizes! - sĂ£o os namorados
enquanto namorados. Antes, depois
sĂ£o gente como a gente, no pedestre dia-a-dia.
Mas quem foi namorado sabe que outra vez
voltarĂ¡ Ă  sublime invalidez
que Ă© signo de perfeiĂ§Ă£o interior.
Namorado Ă© o ser fora do tempo,
fora de obrigaĂ§Ă£o e CPF,
ISS, IFP, PASEP,INPS.

Os cĂ³digos, desarmados, retrocedem
de sua porta, as multas envergonham-se
de alvejĂ¡-lo, as guerras, os tratados
internacionais encolhem o rabo
diante dele, em volta dele. O tempo,
afiando sem pausa a sua foice,
espera que o namorado desnamore
para sempre.
Mas nascem todo dia namorados
novos, renovados, inovantes,
e ninguém ganha ou perde essa batalha.

Pois namorar Ă© destino dos humanos,
destino que regula
nossa dor, nossa doaĂ§Ă£o, nosso inferno gozoso.
E quem vive, atenĂ§Ă£o:
cumpra sua obrigaĂ§Ă£o de namorar,
sob pena de viver apenas na aparĂªncia.
De ser o seu cadĂ¡ver itinerante.
De nĂ£o ser. De estar, e nem estar.

O problema, Senhor, Ă© como aprender, como exercer
a arte de namorar, que audiovisual nenhum ensina,
e vai além de toda universidade.
Quem aprendeu nĂ£o ensina. Quem ensina nĂ£o sabe.
E o namorado sĂ³ aprende, sem sentir que aprendeu,
por obra e graça de sua namorada.

A mulher antes e depois da BĂ­blia
é pois enciclopédia natural
ciĂªncia infusa, inconciente, infensa a testes,
fulgurante no simples manifestar-se, chegado o momento.
HĂ¡ que aprender com as mulheres
as finezas finĂ­ssimas do namoro.
O homem nasce ignorante, vive ignorante, Ă s vezes morre
trĂªs vezes ignorante de seu coraĂ§Ă£o
e da maneira de usĂ¡-lo.


SĂ³ a mulher (como explicar?)
entende certas coisas
que nĂ£o sĂ£o para entender. SĂ£o para aspirar
como essĂªncia, ou nem assim. Elas aspiram
o segredo do mundo.

HĂ¡ homens que se cansam depressa de namorar,
outros que sĂ£o infiĂ©is Ă  namorada.
Pobre de quem nĂ£o aprendeu direito,
ai de quem nunca estarĂ¡ maduro para aprender,
triste de quem nĂ£o merecia, nĂ£o merece namorar.

Pois namorar nĂ£o Ă© sĂ³ juntar duas atrações
no velho estilo ou no moderno estilo,
com arrepios, murmĂºrios, silĂªncios,
caminhadas, jantares, gravações,
fins-de-semana, o carro Ă  toda ou a 80,
lancha, piscina, dia-dos-namorados,
foto colorida, filme adoidado,
rĂ¡pido motel onde os espelhos
nĂ£o guardam beijo e alma de ninguĂ©m.

Namorar Ă© o sentido absoluto
que se esconde no gesto muito simples,
nĂ£o intencional, nunca previsto,
e dĂ¡ ao gesto a cor do amanhecer,
para ficar durando, perdurando,
som de cristal na concha
ou no infinito.

Namorar é além do beijo e da sintaxe,
nĂ£o depende de estado ou condiĂ§Ă£o.
Ser duplicado, ser complexo,
que em si mesmo se mira e se desdobra,
o namorado, a namorada
nĂ£o sĂ£o aquelas mesmas criaturas
que cruzamos na rua.
SĂ£o outras, sĂ£o estrelas remotĂ­ssimas,
fora de qualquer sistema ou situaĂ§Ă£o.
A limitaĂ§Ă£o terrestre, que os persegue,
tenta cobrar (inveja)
o terrĂ­vel imposto de passagem:
"Depressa! Corre! Vai acabar! Vai fenecer!
Vai corromper-se tudo em flor esmigalhada
na sola dos sapatos..."






Ou senĂ£o:
"Desiste! Foge! Esquece!"
E os fracos esquecem. Os tĂ­midos desistem.
Fogem os covardes.
Que importa? A cada hora nascem
outros namorados para a novidade
da antiga experiĂªncia.
E inauguram cada manhĂ£
(namoramor)
o velho, velho mundo renovado.

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