Enterre seus mortos, Ana Paula Maia

Uma habilidosa mescla de novela policial, faroeste de horror e romance filosĂ³fico, escrito por uma das vozes mais originais da literatura brasileira contemporĂ¢nea.
Edgar Wilson Ă© “um homem simples que executa tarefas”. Trabalha no Ă³rgĂ£o responsĂ¡vel por recolher animais mortos em estradas e levĂ¡-los para um depĂ³sito onde sĂ£o triturados num grande moedor. Seu colega de profissĂ£o, TomĂ¡s, Ă© um ex-padre excomungado pela Igreja CatĂ³lica que distribui extrema unĂ§Ă£o aos moribundos vĂ­timas de acidentes fatais que cruzam seu caminho. A rotina de Edgar Wilson, absurda em sua pacatez, Ă© alterada quando ele se depara com o corpo de uma mulher enforcada dentro da mata. Quando descobre que a polĂ­cia nĂ£o possui recursos para recolhĂª-lo — o rabecĂ£o estĂ¡ quebrado —, o funcionĂ¡rio Ă© incapaz de deixĂ¡-lo Ă  mercĂª dos abutres e decide rebocar o cadĂ¡ver clandestinamente atĂ© o depĂ³sito, onde o guarda num velho freezer, Ă  espera de um policial que, quando chega, nĂ£o pode resolver a situaĂ§Ă£o. Nos prĂ³ximos dias, o improvisado esquife receberĂ¡ ainda outro achado de Wilson, o lacĂ´nico herĂ³i deste desolador romance kafkiano: desta vez o corpo de um homem. Habituados a conviver com a brutalidade, Edgar e TomĂ¡s nĂ£o se abalam diante da morte, mas conhecem a fronteira, pela qual transitam diariamente, entre o bem e o mal, o homem e o animal. Enquanto TomĂ¡s se empenha em salvar a alma, Edgar se preocupa com a carcaça daqueles que cruzam seu caminho. Por isso, os dois decidem dar um fim digno Ă queles infelizes cadĂ¡veres. Em sua tentativa de devolvĂª-los ao curso da normalidade, palavra fugidia no universo que Ana Paula Maia constrĂ³i magistralmente, os dois removedores de animais mortos conhecerĂ£o o insalubre destino de seus semelhantes. Com uma linguagem seca, que mimetiza as estradas pelas quais o romance se desenrola, a autora faz brotar questões existenciais de difĂ­cil resoluĂ§Ă£o. O resultado Ă© uma inusitada mescla de romance filosĂ³fico e faroeste que revela o poderoso projeto literĂ¡rio de Maia.
Enterre Seus Mortos
Ano: 2018 
PĂ¡ginas: 136
Idioma: portuguĂªs 
Editora: Companhia das Letras

Ler Ana Paula Maia Ă© uma experiĂªncia marcante. É um soco no estĂ´mago, Ă© uma cacofonia, um tapa na cara. Tudo Ă© cheio de verdade e excessivamente cru. Em sua narrativa - seca, acre e econĂ´mica em construções - as palavras se mostram e revelam a vida, com toda a sua podridĂ£o e estranhamento, esta vida que cotidianamente o mundo insiste em esconder de nĂ³s, em silenciar, em escamotear. Esta vida que tambĂ©m Ă© um pouco de morte. Mas, vamos Ă  histĂ³ria.

O protagonista Edgar Wilson jĂ¡ chama a atenĂ§Ă£o, nĂ£o apenas pelo nome, mas pela sua profissĂ£o insĂ³lita: ele Ă© um removedor. Trabalha em um Ă³rgĂ£o responsĂ¡vel por recolher os animais mortos das estradas e levĂ¡-los para um depĂ³sito, onde sĂ£o triturados em um grande moedor. Seu colega mais prĂ³ximo, TomĂ¡s, Ă© um padre excomungado que distribui bĂªnĂ§Ă£os aos mortos e moribundos que encontra pelo caminho. Ambos convivem com a morte diariamente. E cada um a contempla de uma forma Ăºnica e diferente.
“Edgar Wilson nunca conheceu trabalho que nĂ£o estivesse ligado Ă  morte. Sempre esteve a um passo atrĂ¡s dela, que invariavelmente encontra todos os homens, de maneiras diferentes. Teme morrer porque acredita em Deus. Crer em Deus o leva a crer no inferno e em todas as suas consequĂªncias. Se nĂ£o fosse isso, seria mais um corpo com as mĂ£os sobre o peito. NĂ£o sabe que espĂ©cie de fim estĂ¡ reservado a ele. Mas diante dos mortos, seja humano, seja animal, ele nĂ£o se mantĂ©m insensĂ­vel. NĂ£o existe sentimento de desprezo maior do que abandonar um morto, deixa-lo ao relento, as aves carniceiras, Ă  vista alheia.”

É justamente esta sensibilidade com relaĂ§Ă£o Ă  morte que vai colocĂ¡-lo numa situaĂ§Ă£o que quebra a sua rotina tĂ£o especifica. Ao descobrir o corpo de uma mulher na mata e saber que a polĂ­cia nĂ£o possui recursos para recolhĂª-lo (o rabecĂ£o estĂ¡ quebrado), ele recusa-se a deixar que aquele corpo ali exposto seja devorado e, como num oficio silencioso, decide zelar pelo que sobrou daquela mulher. EntĂ£o leva o corpo para um freezer em seu depĂ³sito, clandestinamente. Enquanto espera a chegada da polĂ­cia, mais um cadĂ¡ver aparece, desta vez de um homem.

TomĂ¡s e Edgar conhecem a morte em suas mais variadas facetas e nĂ£o a temem. Antes, a respeitam e conhecem as suas fronteiras. Sabem que a morte e o sagrado andam juntos e nĂ£o abrem mĂ£o, diante da situaĂ§Ă£o de precariedade dos Ă³rgĂ£os responsĂ¡veis, de dar um final respeitoso e digno Ă queles cadĂ¡veres. E assim começa a jornada destes dois homens, invisibilizados em suas profissões, em suas vidas com pouca importĂ¢ncia, mas que carregam dentro de si o mais humano que podem suportar.

“TomĂ¡s tem esse poder confortador diante da morte, diante das piores noticias e sabe disso. NĂ£o Ă© um homem santo de parĂ³quia, mas um homem de dores, um santo das estradas, disponĂ­vel para Deus e para os homens e servindo da maneira que melhor sabe: vivendo no encalço da morte.” 


A narrativa de Ana Paula Ă© diferente de tudo o que eu jĂ¡ havia lido. Precisa e objetiva, seca, mas nĂ£o se torna rasa ou superficial por isso. Antes, em sua economia de palavras, tece significados que margeiam o texto, que compõem um mosaico de ideias, sentires e intenções sobre a morte, a finitude, a dor e a misĂ©ria humanas. Seu narrador em terceira pessoa, onisciente e onipresente, nos presenteia com uma viagem filosĂ³fica e brutalizante sobre a realidade.

NĂ£o hĂ¡ como seguir incĂ³lume a esta viagem. É preciso parar, respirar, esperar. HĂ¡ horror e realidade que pulsam o tempo todo do texto, o prĂ³prio texto nos sufoca, ao mesmo tempo que nos coloca nesse lugar em que tanto evitamos estar. A nossa sociedade execra a morte e tenta maquiĂ¡-la todo o tempo. Uma morte assĂ©ptica, limpa, branca.

Em Enterre os seus mortos, Ana Paula apresenta-nos uma morte que é animal, selvagem, nossa pertença, nossa vizinha, espelho nosso manchado de sangue e vísceras. Morte real e mais que cotidiana, quase banal nas estradas e nas periferias de nosso país.


Sobre a autora: Ana Paula Maia (Nova Iguaçu, dezembro de 1977) Ă© escritora e roteirista. Filha de professora, na adolescĂªncia, estudou teatro na CAL (Casa de Artes de Laranjeiras). Mais tarde, entrou para as faculdades de CiĂªncia da ComputaĂ§Ă£o e ComunicaĂ§Ă£o Social. Seu primeiro romance, O habitante das falhas subterrĂ¢neas, foi publicado em 2003. Esses foram seus primeiros passos, e apĂ³s a publicaĂ§Ă£o do primeiro romance, segue dedicando-se, na maior parte do tempo, Ă  literatura. É autora da trilogia A saga dos brutos, iniciada com as novelas Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos e O trabalho sujo dos outros (publicadas em volume Ăºnico) e concluĂ­da com o romance CarvĂ£o animal. A autora tematiza a relaĂ§Ă£o do homem com o trabalho, a moldagem do carĂ¡ter pelas atividades diĂ¡rias e a inferiorizaĂ§Ă£o do homem pelo trabalho que exerce.

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