Contos Negros, Ruth Guimarães


Em muitos lugares brasileiros, ainda persiste o costume de contar histórias…
Em geral, em torno de uma fogueira. É só ficar de mão no queixo, sentado em cima das toras, escutando. O círculo das caras atentas arde ao calor das chamas. Todos se voltam para o narrador, num tropismo original. Não é que o tempo esteja sobrando, não é isso. Em verdade, não existe mais o tempo. Acabou-se o seu império sobre os homens. Não se cuida nem da hora, nem do correr dos instantes. O tempo é o fluir da história. Tempo e espaço se contam na vida dos príncipes e das princesas e do seu povo encantado.

Assim, a história vem lenta. Assim, vem comprida. Com repetidos pormenores, cumulativa, misteriosa e sutil, dentro do sutil da noite misteriosa. Transportamo-nos para um outro mundo habitado por duendes e fantasmas, por espíritos bons, pelos bichos que falam. Coisa linda de se ouvir e de se viver. A empatia é tanta, que estamos tão do lado de lá, quanto Alice no país dos espelhos. Dá pena haver crianças que nunca ouviram casos narrados assim.

Estas histórias são, pois, nossas, brasileiras e africanas, genuínas e espontâneas, inventadas pelo povo. Correm por aí (ainda, mas não por muito tempo). Cumpriram e cumprem a contento a alta função principal das histórias: a de entreter. E, através do entretenimento, realizam, certamente, esta coisa extraordinária: predispõem-nos ao amor do Bem, do Belo e do que é Nosso. Mais não lhes poderemos pedir.

Contos Negros
Ano: 2020
Páginas: 128
Idioma: português
Editora: Faro Editorial

A África é o tecido onde Ruth Guimarães alinhava as suas palavras e costura, com maestria e delicadeza, as muitas histórias de Contos Negros. Em nosso solo, nas muitas estradas de terra, inúmeras culturas e na nascente da tradição oral, a escritora recolheu os contos, agora ampliados neste caleidoscópio que é o Brasil e trouxe essa seleção para nós. 

O livro foi escrito em 1984, mas devido a vários motivos pessoais, entre eles o fato de ter que cuidar de dois filhos com síndrome de Alport, o projeto dos contos foi ficando para trás e em 2014 a escritora veio a falecer. Agora, seis anos depois, com a ajuda dos filhos da autora, a editora Faro traz esta coletânea tão importante e necessária e reacende literariamente o nome de Ruth Guimarães. 

O livro é dividido em quatro partes: mitos iorubanos, cosmogonia afro-brasileira, três contos de exemplo e os animais na mitologia afro-brasileira. No total são 15 contos que versam sobre temas distintos e já fincados na tradição oral em sua maioria. Após cada conto, há um box de informações que situa a história socialmente e historicamente, o que amplia as suas possibilidades narrativas. 
Por ter sido escrito na década de 80, o livro traz algumas posições e termos já em desuso, como por exemplo o termo mulato. O editor manteve a redação original da autora, acrescentando algumas notas de rodapé que situam o leitor neste contexto. Apesar de ser romancista, historiadora e ter uma ampla formação acadêmica, a linguagem de Ruth é simples, popular, direta. Uma linguagem de uma contadora de histórias nata. 

O projeto gráfico do livro reafirma sua intencionalidade e dialoga diretamente com o repertório africano que ele anuncia, com cores e geometrias que se harmonizam e com uma diagramação própria, papel de alta qualidade e belíssimas capas e folhas de guarda. É um livro necessário, importante, mas para além disso, uma narrativa divertida, leve e que nos reconecta com a ancestralidade, reafirmando o poder das narrativas negras e dando a estas o devido lugar de destaque. 

                                  



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