República Surda, Ilya Kaminsky


Uma parábola sobre amor e linguagem em tempos de barbárie. Qual o sentido das palavras em um lugar dominado pelo silêncio?
Na fictícia cidade de Vasenka, uma estranha guerra tem início depois que um garoto surdo é assassinado por soldados. O som dos conflitos – gritos de ordem, tiros, sirenes e bombas – não chega mais aos ouvidos dos habitantes, que passam a conviver com um silêncio ensurdecedor. Nesse cenário, regido pelo autoritarismo e pela crueldade, as palavras perdem o sentido, e o silêncio dá espaço a outra forma de comunicação.

República surda
Ilya Kaminsky
Ano: 2023 
Páginas: 168
Idioma: português
Editora: Companhia das Letras


Os surdos não acreditam no silêncio. O silêncio é invenção dos ouvintes.
Se você me acompanha aqui, já pode ter percebido que poesia não é o meu forte. Mas não consegui resistir ao apelo dramático de República Surda por vários motivos.

Um deles é o fato de que, mesmo se tratando de poemas, eles se juntam para  contar uma história. Além de abordar os sentimentos conflituosos despertados em pessoas que viveram o trauma de uma guerra. Mas, principalmente, por nos levar a uma profunda reflexão sobre o poder das palavras e a necessidade do silêncio.

Nós vivemos felizes durante a guerra

E quando eles bombardearam a casa das outras pessoas, nós

protestamos
mas não o suficiente, nos opusemos a eles mas não

o suficiente. Eu estava
na minha cama, ao redor dela os Estados Unidos

desabavam: casa invisível após casa invisível após casa invisível.

Levei uma cadeira para fora e assisti ao sol.

No sexto mês
de um reinado desastroso na casa do dinheiro

na rua do dinheiro na cidade do dinheiro no país do dinheiro
nosso incrível país do dinheiro, nós (perdoem-nos)

vivemos felizes durante a guerra.


Kaminsky é bacharel em ciência política pela Georgetown University, e República Surda, seu segundo livro, foi lançado em 2019 nos EUA, aclamado pela crítica como um dos melhores livros de poesia daquele ano.

O livro é uma epopéia com personagens e cenários recorrentes e cuja ordem de apresentação dos poemas trás uma lógica cronológica para a história. O leitor terá dois caminhos a seguir: o do mutismo indiferente às dores da crueldade humana ou a não aceitação de deixar o amor morrer mesmo vivendo esse contexto. Uma leitura que é pura reflexão. Recomendo!



Em um Tempo de Paz


Habitante da terra por quarenta e tantos anos
uma vez estive num país pacífico. Vejo os vizinhos pegarem

o celular para ver
um policial exigindo a carteira de motorista de um cara. Quando o homem alcança sua carteira, o [policial atira. Na janela do carro. Atira.

É um país pacífico.

Metemos o celular no bolso e vamos embora.
Para o dentista,
buscar as crianças na escola,
comprar xampu
e manjericão.

No nosso país um garoto que leva um tiro da polícia fica largado na calçada
por horas.

Vemos em sua boca aberta
a nudez
de toda nação.

Ficamos vendo. Vendo
os outros vendo.

O corpo de um menino jaz na calçada exatamente como o corpo de um menino —
É um país pacífico.

Que esquarteja o corpo dos nossos cidadãos
na maior facilidade, do jeito que a esposa do Presidente apara as unhas do pé.

Todos nós
ainda temos de fazer o esforço de ir ao dentista,
de lembrar de fazer
uma salada de verão: manjericão, tomates, é uma alegria, tomates, adicione uma pitada de sal.

Estes são tempos de paz.

Não ouço tiros,
mas vejo pássaros espalhados nos quintais dos subúrbios. Como brilha o céu
quando a avenida gira em seu próprio eixo.
Como brilha o céu (perdoe-me) como brilha.





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