À convite: Ilmara Fonseca - Grito, Godofredo Neto

Construído de forma que a performance e a teatralidade ocupem um lugar central, Grito é o epílogo da octogenária Eugênia e sua relação com o jovem e ambicioso Fausto. Em 21 atos, a narrativa é marcada pelo embate entre as esferas do real e do imaginário.
Godofredo de Oliveira Neto experimenta formatos e problematiza a linguagem, conduzindo a partir da perspectiva da ex-atriz de teatro uma trama que transita entre o mundo da criação e da encenação.
Grito
Godofredo Neto
Ano: 2016 
Páginas: 160
Editora: Record 

Grito chamou-me a atenção pela sua premissa e, principalmente, pela sua protagonista. Eugênia, uma mulher de 80 anos, carregada de lembranças trazidas pela vivência de sua arte e que ousa relacionar-se (não importa de qual maneira) com um homem, muito mais jovem e que a ela está unido pela arte do teatro. Fiquei querendo saber mais sobre esta história e de que forma o autor traçaria essa narrativa que ao meu ver já impactava antes mesmo de mostrar-se. 

Tendo o Rio de Janeiro como cenário, a obra contrasta a relação de Eugênia e Fausto (que não tem esse nome à toa). Eugênia é uma mulher admirável, complexa em suas afetividades, seus sonhos e desejos. Seu personagem dá a tônica da narrativa, pois é ela quem conta a história. E através do seu olhar vemos um cotidiano onde a vida se assemelha a um palco e os sentimentos pulsam vivos, o tempo todo. 

O autor se distancia de uma ideia de velhice como algo morno, quieto, lento ou triste. Eugênia é toda desejo e se alimenta vorazmente da vivacidade trazida pelos 19 anos de Fausto. A relação dos dois vai além de uma relação de aprendiz e mestre. Ela se revela e se mostra tendo o teatro como fio condutor. Aliás, o teatro é o verdadeiro tema escondido nas relações dos personagens. 

O formato da obra e todas as outras possíveis construções, bem como personagens e ações, remetem ao teatro e aos seus clássicos personagens e peças. Não sabemos muitas vezes onde transita a realidade e o imaginário no discurso de Eugênia. Esse é o jogo de linguagem que o autor utiliza para fazer-nos pensar sobre as inconsistências dos sentimentos humanos, e do quanto a memória pode ser um amálgama bem feito de realidade e imaginação. 

O livro alterna momentos de prosa com outros momentos de texto teatral, embora seja dividido em atos. Esta hibridez e descontinuidade do texto, embora tenha sido o plus para a obra, o que a faz diferenciada, foi o que me causou certo estranhamento. A sensação que me deu é que estava começando a formar uma ligação com a narrativa e, de repente, era arrancada dela para tentar entrar novamente. Apesar do livro ser curto, isso fez com que a minha leitura não fosse fluida, e em alguns momentos se tornasse cansativa ou desinteressante. 

Apesar disso, a escrita de Godofredo é bela, ágil e precisa e traz reflexões muito importantes sobre a arte, a memória, a maturidade e como esses elementos emolduram o cotidiano. 


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